Por Marcos Stefano
O jornalista Fábio Marton era considerado um menino prodígio nas mãos do Senhor. Neto de um pastor respeitado na igreja Assembleia de Deus e filho de crentes, com apenas nove anos o garoto já era tratado como um “pastorzinho”, e aproveitava as oportunidades que recebia para subir no púlpito e falar do Evangelho. Chegou à adolescência e mocidade vivendo uma vida dedicada a Cristo. Há 20 anos, entretanto, tudo começou a mudar. No final de 1991, Marton perdeu a mãe num acidente de automóvel. O irmão ficou paraplégico. “Vi minha mãe ser enterrada e me questionava onde estava Deus, que não fazia nada”, lembra. As dúvidas cresciam e se transformavam em inquietações à medida que o garoto avançava pela adolescência e via abusos, fanatismo e falta de consistência na mensagem das igrejas pelas quais passava.
Marton bem que tentou lutar contra as desconfianças. Certa vez, até falou em línguas estranhas – o sinal do batismo com o Espírito Santo, de acordo com o que creem os pentecostais. Nada adiantou. No colégio técnico e na faculdade, tentou viver como um cristão liberal, conciliando fé e teorias científicas. Porém, como os milagres que esperava não chegavam e o esfriamento espiritual só aumentava, o afastamento dos templos deixou de ser temporário e se tornou definitivo. Numa noite, ele subiu ao telhado de sua casa e contemplou o céu estrelado. Mais uma vez, procurou o Altíssimo, tentou falar com ele, mas conta não ter ouvido resposta. Desceu com a convicção: Deus não existe!
Histórias como a de Fábio Marton têm se tornado mais comuns. Ultimamente, tem crescido a quantidade de brasileiros que se declaram ateus. Eles ainda são minoria em um país de expressiva tradição cristã, onde católicos e evangélicos, seguidores das duas maiores confissões, somam mais de 90% da população, mas têm chamado a atenção. Cada um a seu jeito, os relatos pouco diferem da trajetória dos grandes defensores do ateísmo no mundo – gente como o biólogo evolucionista Richard Dawkins, famoso pelo combate que travam contra a religião, principalmente o cristianismo ocidental (ver quadro). A grande novidade é que essa verdadeira “guerra” já não tem mais como palco somente a Europa e os Estados Unidos. Ímpio – O Evangelho de um ateu, livro no qual Marton conta suas memórias, usa de muita ironia para criticar parte das igrejas protestantes e faz uma apologia contra Deus, é um dos mais vendidos da Editora Leya. E essa batalha cada vez mais é travada no Brasil, nação que muitos líderes evangélicos dizem estar experimentando um dos maiores avivamentos espirituais da modernidade.
E a guerra contra Deus não é apenas filosófica. A postura de incredulidade é parte de um processo de secularização do Estado, embalado com tentativas de limitar a voz dos religiosos na sociedade brasileira, inclusive na esfera legal. Em agosto, um caso chamou a atenção da opinião pública nacional. A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Estado de São Paulo entrou com uma ação civil pública contra a Rede TV! e a Igreja Internacional da Graça de Deus. A alegação é de que, no programa O profeta da nação, exibido em horário pago naquela emissora, teriam sido proferidas ofensas contra os ateus. No episódio levado ao ar no dia 10 de março deste ano, no quadro O profeta nas ruas, o pastor e apresentador João Batista convida transeuntes para uma oração. Em dado momento, pede que “apenas aqueles que acreditam em Deus” devem se aproximar. Em seguida, repele os outros: “Quem não acredita em Deus pode ir para bem longe de mim. A pessoa que não acredita em Deus é perigosa. Ela mata, rouba e destrói”, declara o religioso.
Até o fechamento desta edição, a ação ainda estava em tramitação. A intenção do Ministério Público é obrigar a Igreja da Graça, responsável pelo programa, a exibir retratação da fala em tempo dobrado ao da transmissão original e a veicular mensagens educativas contra a discriminação religiosa. De acordo com o procurador responsável pelo caso, Jefferson Dias, as declarações do pastor João Batista ferem o direito constitucional à liberdade de pensamento e religião. Em sua denúncia, ele argumenta que a laicidade do Estado também dá ao cidadão a liberdade de ser ateu.
PATRULHAMENTO
Ainda que a ação seja indeferida, ela chama a atenção para um patrulhamento que tem havido na sociedade brasileira, particularmente entre os chamados formadores de opinião. E, o que alguns encaram como demonstração da laicidade do Estado é denunciado por outros como restrição à liberdade de crença, um dos pilares das democracias ocidentais. Em grandes nações européias como França, Alemanha, Grã-Bretanha e Espanha, o movimento ateísta já tem representatividade comparável à de partidos políticos. Uma de suas ações mais visíveis são as campanhas ideológicas através de propaganda – inclusive, com a exibição de frases e textos ateístas em jornais, ônibus e outdoors. Além disso, já há políticas de Estado para coibir a expressão religiosa, como a proibição ao uso de véus por parte dos muçulmanos e de símbolos cristãos como crucifixos em prédios públicos.
O Velho Continente abriga quatro das cinco nações em todo mundo que menos aceitam a existência divina. Nada menos que 64% dos suecos, 48% dos dinamarqueses e, praticamente, a metade dos franceses e dos alemães já enchem a boca para dizer que não acreditam em Deus. “Isso não é mais uma tendência por lá. É a realidade, ainda que alguns grupos religiosos e tradicionais se oponham. O problema é que esse modelo, com ares ‘politicamente corretos’, ganha força também nos Estados Unidos e já chega ao Brasil”, analisa o pastor e escritor Augustus Nicodemus Lopes, chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. Ele alerta que proibições a símbolos e expressões públicas de fé podem, no futuro, transformar-se em vedações legais a cultos. “Democracias só podem existir enquanto houver liberdade de expressão e de religião”, pontifica.
No Brasil, onde os chamados sem-religião são o grupo que mais cresce na atualidade – eles passaram de pífios 0,5% em 1950 para 7,8% da população nos anos 2000, e a expectativa é por um número maior a partir da totalização dos dados aferidos pelo último Censo –, a face mais visível desse processo de secularização está nas ruas. No mês de junho, duas grandes manifestações realizadas em São Paulo viraram palanques para discursos inflamados por conta da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de legalizar a união estável entre pessoas do mesmo sexo. A primeira foi a 19ª Marcha para Jesus, uma das maiores manifestações religiosas do planeta. “Eles querem aprovar uma lei para dizer que a Bíblia é um livro homofóbico e botar uma mordaça em nossa boca. Amanhã, se alguém quiser fazer uma marcha em favor da pedofilia, do crack ou da cocaína, vai poder fazer. Nós, em nome de Deus, dizemos não”, declarou na ocasião o pastor Silas Malafaia, um dos protagonistas do evento. Apenas três dias depois, em outro lugar da cidade, a 15ª Parada do Orgulho LGBT ( Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) tecia críticas aos religiosos e os acusava de “homofobia”.
“Não tenho dúvida de que essa batalha para desqualificar a posição dos evangélicos e classificá-la como preconceituosa e discriminatória é parte desse processo de secularização do Estado brasileiro”, destaca o pastor e deputado federal João Campos (PSDB-GO), presidente da Frente Parlamentar Evangélica. A referência é clara: projetos como o PL 122/2006, que, se aprovado, criaria restrições à contestação da prática homossexual, ainda que embasada em princípios religiosos. “Não somos contra os direitos de ninguém, mas não podemos aceitar leis que nos impeçam de falar nossa opinião”, reivindica o parlamentar.
Apesar de esse projeto ter sido arquivado, ao que parece, em definitivo, a agenda é bem mais ampla e traz outras propostas, como a legalização do aborto e o Plano Nacional de Direitos Humanos, todos com alardeada defesa da democracia. “Acontece justamente o contrário. A liberdade de expressão é que está em risco nessa guerra. O que existe é uma confusão em torno da ideia de laicidade, que não é a mesma coisa que ateísmo”, continua Campos. “O Estado laico é aquele que protege a expressão de todas as religiões, e nenhuma em particular. Ele precisa garantir a possibilidade dos cultos. O Estado é laico, mas a sociedade, cristã”, completa. O oposto do que aconteceu em 2008, quando essa neutralidade foi colocada em dúvida com a decisão do governo brasileiro, então chefiado por Luiz Inácio Lula da Silva, de firmar um acordo com o Vaticano. Ao definir o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, o acordo destacava a obrigatoriedade de o Estado oferecer ensino religioso, católico e de outras confissões, para alunos do ensino fundamental. Com matrícula facultativa ou não, é uma clara perda de limites. Apesar disso, recebeu pouca atenção na época. “Quando não há mobilização social, protestos, o assunto cai no esquecimento. Há muitos interesses para que seja dessa forma”, lamenta o chanceler Lopes.
“IRRACIONALISMO”
Ele mesmo foi envolvido em uma polêmica muito mais ruidosa no começo deste ano. Tudo por conta de um protesto de ativistas de movimentos LGBT contra o Mackenzie por causa de um artigo que criticava o PL 122/2006 e estava no site da instituição. Cerca de quatro mil pessoas se reuniram nas imediações da universidade gritando palavras de ordem contra a homofobia. “Foi mais um factóide para atrair a atenção da mídia sobre um assunto condenado”, avalia Augustus Nicodemus Lopes. “O texto foi escrito por um pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil e fazia parte de uma área de debates no site. Estava lá havia cinco anos. Por que tanta comoção só agora?”, questiona o educador. Apesar de ser um fato isolado, ele acredita que outras manifestações e projetos virão a reboque do movimento secularista e ateu. “A Europa se divorciou de suas raízes cristãs, e agora sofre com o ateísmo. Isso vai acontecer com o Brasil?”
A pergunta é de difícil resposta. Enquanto isso, os novos ateus não ficam parados. Dawkins e seus pares recentemente criaram uma Aliança Ateísta Internacional. O objetivo do grupo é investir maciçamente em campanhas a favor do ateísmo em países em desenvolvimento, e o Brasil, por seu gigantismo e tradição cristã, já é apontado como uma das prioridades. Durante a assembleia de fundação da organização, o discurso estava ensaiado: “A Aliança será a voz global das causas ateístas e seculares. Vamos promover e apoiar o livre pensamento em todo o planeta”, destaca Tanya Smith, sua primeira presidente. Já a prática parece estar longe desse ideal. A julgar pelo belicismo dos neo-ateus, há quem tema novas inquisições, dessa vez laicas e sem fogueiras, mas igualmente danosas ao ser humano como o obscurantismo medieval.
Por aqui, o que já existe é a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), entidade surgida para combater o que seria o preconceito contra aqueles que não admitem a existência divina. Mas suas peças publicitárias são um verdadeiro tapa na cara dos crentes. Uma delas traz fotos do célebre ator Charles Chaplin e do ditador nazista Adolf Hitler. Junto ao primeiro, a frase: “Não acredita em Deus”. Abaixo da imagem de Hitler, a provocação: “Acredita em Deus”. Só que, embora certa a justificativa de que “religião não define caráter”, como sentencia a Atea, não dá para esquecer que foram as teorias evolucionistas de Darwin que inspiraram as leis de eugenia do nazismo alemão. “Todos os grupos que sofrem algum tipo de preconceito procuram fazer campanhas de conscientização para tentar minimizar o problema. Não somos diferentes”, declara Daniel Sottomaior, presidente da associação.
“O ateísmo cresce muito por causa do aumento do irracionalismo. Com a internet e a comunicação de massa, acredita-se cada vez mais em astrologia, experiências extrassensoriais, bruxas, alienígenas e discos voadores. Mas isso nada tem a ver com o cristianismo”, aponta o estudioso Michelson Borges, editor da Casa Publicadora Brasileira e membro da Sociedade Criacionista Brasileira. “A Bíblia oferece as melhores respostas para as mais difíceis inquietações da modernidade, aí incluídas o sentido da vida e o destino após a morte”. Para ele, dizer que os verdadeiros cientistas rejeitam a fé em Deus não passa uma falácia – tanto, que uma grande pesquisa realizada há alguns anos com cientistas dos países mais desenvolvidos do mundo revelou que 40% deles acreditam, sim, em um Deus pessoal. “Se o método científico pelo qual se orientam demonstrasse realmente a inexistência da divindade, não haveria um cientista crédulo”, raciocina Borges.
Um deles é Francis Collins, diretor do Projeto Genoma Humano, responsável pelo primeiro mapeamento da cadeia do DNA do homem. Ateu na juventude, Collins se converteu depois que, mesmo já doutorado, voltou aos bancos escolares. Estudando medicina, ele conviveu com vários pacientes em hospitais, e percebeu que os que tinham fé mantinham a serenidade e a espiritualidade, mesmo diante das piores adversidades. Sua história é revelada em A linguagem de Deus (Editora Gente), obra em que conta vários casos interessantes. “Quando o então presidente norte-americano Bill Clinton anunciou na Casa Branca o mapeamento do DNA humano, agradeceu a Deus. Para mim, não houve qualquer constrangimento; aliás, eu até ajudei a escrever o discurso. Fé e ciência não são contraditórias, e o homem só conseguirá ser completo conciliando as duas.”
De Cristianismo Hoje
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